segunda-feira, 13 de agosto de 2018

O milagre da vida



Por: Janete Manacá


Elas fizeram parte da minha infância. Geralmente moravam na zona rural ou em pequenos povoados. Só iam às cidades motivadas por grandes necessidades. Eram mulheres humildes, porém guerreiras e residiam em pequenas casas de madeiras de chão batido, fogão de lenha e no quintal uma horta farta de plantas medicinais, uma farmácia viva.  O cotidiano dessas mulheres não era fácil. Lavavam roupas no rio, tomavam água de mina distante de suas casas a dois ou três quilômetros.

Estou me referindo às benzedeiras que também acumulavam o ofício de parteiras. Eram muito respeitadas por toda a vizinhança. A qualquer hora do dia ou da noite quando eram requisitadas para ajudar no nascimento ou benzimento, lá iam elas com suas sacolas de repletas de variadas ervas. Nem sempre os necessitados tinham condições de oferecer uma carroça para ir busca-las. Mas isso não fazia a menor importância, afinal já estavam acostumadas a atravessar caminhos íngremes entre matas fechadas, cruzar pontes e se proteger de gados no meio dos pastos.

Em tempos difíceis quando a colheita era prejudicada por pragas, secas ou chuvas em demasia elas passavam por necessidades, mesmo assim, a caridade era uma qualidade que sempre florescia em seus corações. Nunca se deixavam abater, eram mulheres acima de 50 anos, mas pelas precárias condições vividas aparentavam muito mais. Seus passos eram firmes e inabaláveis, porque o movimento natural da vida não podia esperar.

Eram mães universais. As crianças vindas ao mundo por suas abençoadas mãos eram muito gratas, tomavam bênção e as respeitavam como uma genitora. E nesse bailado contemporâneo de afazeres necessários, essas sábias mulheres eram mestras e aprendizes e suas generosidades ultrapassavam os limites dos seus lares. Esteio de família, matriarcas do amor, a música, a poesia e a inspiração em constante movimento. Eu tive o prazer de ser amparada por essas nobres mulheres. Foi por meio de suas sagradas mãos que eu visualizei os primeiros raios solares desse planeta terra.

A missão dessas destemidas mulheres independe de religião, é repassada oralmente de geração em geração e tem aliviado as mazelas de muita gente e em geral, moradores de comunidades, distante das cidades. Elas conseguem ser e estar no mundo, por isso, criam, recriam, expandem e se colocam a serviço do cotidiano comunitário, por meio de suas práticas solidárias. Movida por essa reflexão eu me lembrei de Kalil Gibram – o poeta do amor, que dizia que viemos ao mundo para viver na glória do amor e na luz da beleza, que são reflexos de Deus.

Com o passar o tempo, a tradição do benzimento ainda se mantem. Para todos que buscam a cura ou mesmo um conforto, há sempre uma reza ou um canto, acompanhados de ervas curativas. Atualmente, nas cidades, dificilmente encontramos benzedeiras e muito menos parteiras. E quando as encontramos são senhoras que já passam dos 80 anos e não conseguem repassar a tradição porque os filhos não tem interesse.

Eu sou orgulhosamente neta de um benzedor. Não tive o prazer de conhecê-lo, mas minha mãe sempre me falava sobre ele, seu conhecimentos sobre ervas e o exercício do benzimento para cura do corpo e da alma. Se ela tivesse herdado esses dons, quem sabe hoje, eu seria uma benzedeira. A essas lindas mulheres a minha reverência e gratidão. Minha mãe parteira e minha mãe biológica, ambas se chamavam Ana e já voltaram para as estrelas. Saudades é a palavra que define esse momento. Não é fácil tecer palavras, quando se trata de pessoas tão especiais, tão luz, tão mar, tão luar...

Eu vim do pântano dos aflitos
Em meio a olhares corajosos
De quem vence os próprios limites

Cheguei chorando para me certificar
De quantos colos estavam a me esperar
Depois de nove meses de desafios 

Haviam mãos de mulheres guerreiras
Cuja fé vence qualquer barreira
Eram minhas doces e ancestrais benzedeiras

Com as mãos  em feitio de oração
Agradeciam o milagre de mais uma vida
Que renascia na dureza daquele chão

Choros e cantos misturavam-se  naquele instante
E o seio materno a jorrar o leite além do pranto
Na certeza de mais um dia de efêmera felicidade

Mulheres marcadas pela impiedade do passar do tempo
Rompem o sagrado e divino momento
E erguem os olhos ao firmamento em gratidão

É a vida emocionada  que  pede passagem 
É a  flor que se rompe  a espera de liberdade 
E recebe boas vindas patuá, benzimento e afetividade


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